quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Beirute em chamas


PorRONALD SANTOS BARATA

A explosão, hoje, no porto da capital do Líbano, Beirute, ocorreu em meio à grave crise econômica, social e sanitária, que o país vive, desde o fim da guerra civil em 1990, e em meio a extrema pobreza.   É situação bastante complicada e, tentando ajudar para o entendimento, apresento um “apanhado” de um texto sobre o país, no trabalho que estou concluindo, denominado “Os Meandros do Poder Mundial”. Fiz vários cortes e alterações e, por isso, não é completo.

            O Líbano, é um dos vários países que ocupam o território que foi habitado pelos fenícios, cerca de três mil anos a.C., considerado o berço da Humanidade, chamado, conforme a Bíblia, de Terra de Canaã. Tem apenas 10.400 km². Ex-possessão do Império Turco-Otomano. A população, cerca de 4,5 milhões, é bastante heterogênea, formada por muçulmanos (sunitas, xiitas e alauitas), drusos, cristãos (maronitas, ortodoxos gregos, protestantes e armênios), além de pequenos grupos de judeus, hindus, budistas e baha’is, e abriga centenas de milhares de refugiados palestinos. Essa diversidade provoca muitos choques na sociedade.

            O sistema político procura contemplar os maiores grupos religiosos, devido ao acordo realizado em 1991. A Constituição determina que a presidência da República seja ocupada por um cristão maronita, o primeiro-ministro tem que ser um muçulmano sunita e a presidência do parlamento é entregue a muçulmano xiita. O Parlamento divide as 128 cadeiras, entre muçulmanos xiitas e sunitas com o mesmo número, mais os drusos, cristãos maronitas, cristãos greco-ortodoxos, cristãos greco-católicos, cristãos armênio-ortodoxos, muçulmanos alauitas, protestantes, coptas (cristãos), católicos romanos e judeus. É uma complicada divisão. Sofre influência das disputas entre poderosas famílias, e a ingerência de países da região, dos Estados Unidos e da França.

Em 1923, a Liga das Nações referendou o domínio da França sobre Líbano e Síria. Em 1943, o Líbano conquistou a independência e, em 1945, participou da criação da Liga Árabe, juntamente com Egito, Síria, Iraque, Transjordânia, Arábia Saudita e Iêmen. A Síria considera que o território libanês lhe pertence, devido a ter sido separado do Império Otomano.

            Após a partilha da Palestina, em 1947, e criado o Estado de Israel, em 1948, cerca de 350 mil refugiados palestinos estabeleceram-se no sul do Líbano, aliando-se aos árabes muçulmanos. Os diversos embates entre os árabes muçulmanos contra os cristãos maronitas, levaram o presidente Chamoun, maronita, a pedir ajuda a Eisenhower, presidente dos EUA, que enviou marines. 

            Os conflitos entre palestinos e cristãos voltaram a se acirrar a partir de 1970, devido à criação de acampamentos palestinos no sul do país, inclusive uma base da OLP-Organizaçaão para a Libertação da Palestina. Os falangistas cristãos não aceitavam a presença de palestinos em território libanês e apoiavam Israel. Os muçulmanos, contrários a Israel, apoiavam os palestinos e tentaram assumir o governo. Eclode, em abril/1975, a guerra civil, morrendo dezenas de milhares, dos dois lados. Os falangistas cristãos efetuaram diversos ataques aos campos de refugiados palestinos, com apoio da Síria.

A organização palestina AL FATAH, criada,em 1958, poe nacionalistas, liberais e socialistas, liderados por Yasser Arafat. Objetiva implantar na palestina um estado laico e democrático.

Em 1976, a Síria, com apoio da Liga Árabe, ocupa o país. Mas as violências contra os acampamentos de refugiados continuam. A OLP ataca o campo de Damour, ocupado por cristãos. Em represália, milícias cristãs e o Partido Falangista, apoiadas por tropas sírias e conselheiros israelenses, invadem o campo de refugiados palestinos denominado Tell-al Zaatar, em Beirute, matando de 2 a 3 mil pessoas.  Encerrados os conflitos, a ocupação síria permaneceu.

Em 1978, alegando que o Líbano estava permitindo o uso de seu território por grupos terroristas, inclusive tendo cometido um atentado a bomba num ônibus em Tel Aviv, tropas israelenses atacaram acampamentos de refugiados palestinos. A ONU envia um exército de pacificação.

Após o assassinado do presidente eleito Bashir Gamayer (líder dos falangistas cristãos de direita), Israel desencadeia a “Operação Paz na Galileia” e, novamente, invade o Líbano, em 1982. O Primeiro-Ministro israelense, Menahem Begin, e o Ministro da Defesa, Ariel Sharon, atribuíam à OLP ações que a Organização afirmava não ter praticado, mas os israelenses pretendiam aniquilá-la. A Organização chegou a manifestar a disposição de negociar.

Para essa invasão do sul do Líbano, houve um acordo com o representante norte-americano Philip Habib, de que a capital, Beirute, não seria invadida e os americanos protegeriam a população civil. O acordo foi violado e as tropas israelenses agiram com extrema brutalidade, provocando muitas mortes de civis palestinos e libaneses. Invadiram Beirute e ocuparam a área industrial. Culminou com as atrocidades praticadas contra refugiados nos acampamentos de Sabra e Shatila, que foram cercados pelas tropas de Israel que mandaram, numa noite de setembro, os falangistas cristãos invadirem os acampamentos, ajudados pelo exército do sul do Líbano. A ordem era matar toda a população dos acampamentos, independente de sexo e idade. As mulheres, antes de serem assassinadas, eram estupradas. Os homens velhos eram assassinados na hora, enquanto os mais novos foram transportados para lugar desconhecido. Crianças, no colo das mães, eram mortas.

Calcula-se em 2 mil o número de mortos no massacre que se estendeu por 2 dias. O fato abalou a própria população israelense, que fez manifestação, em Tel-Aviv, reunindo 400 mil pessoas, protestando e exigindo punição para os responsáveis, que nunca aconteceu. São impressionantes os relatos dos médicos e enfermeiros retirados do hospital em que trabalhavam, salvos por militares americanos quando estavam sendo transportados para algum lugar. Sendo uma ocupação militar, Israel teria que cumprir a Convenção de Genebra-IV, que determina ao ocupante a proteção das populações civis. Tropas dos EUA apoiaram as forças de Israel.

Líderes de várias religiões criaram o HEZBOLLAH, organização político-militar, para expulsar os israelenses. Tem apoio do Irã e da Síria. Teve apoio, também, da Rússia e do Iraque.

Em 1985, libaneses explodem um carro bomba, próximo a um quartel norte-americano, matando 241 fuzileiros navais.

Em outubro/1990, acaba a guerra civil. Novo governo foi formado e o Exército reconstruído. Assina com a Síria, o Tratado de Irmandade, Cooperação e Coordenação em que o Líbano declara aceitar as tropas da Síria, legitimadas pela Liga Árabe, que protegeria o Líbano de ataques externos. Em 1992, realizam-se eleições legislativas e Rafiki Hariri, muçulmano, foi eleito primeiro-ministro. Em 1998, o Parlamento elege presidente o comandante do Exército, Emile Lahoud, sucedendo a Elias Hrawi.

Em maio/2000, sob pressão da opinião pública israelense, as tropas israelenses retiram-se do sul do Líbano; o território é devolvido. Entretanto, os libaneses reclamam a devolução dos territórios anexados por Israel em 1967. Embora condenados pela ONU, continuaram os combates entre o Hezbollah e israelenses.

Em janeiro/2004, Hezbollah e Israel, mediados pela Alemanha, concretizam um acordo em que 400 palestinos e militantes de outras nacionalidades são trocados pelos restos mortais de três soldados israelenses e um empresário vivo.

O Conselho de Segurança da ONU pediu, em setembro/2004, a retirada dos invasores sírios. O primeiro-ministro libanês foi assassinado em fevereiro/2005, havendo forte reação popular, desaguando na ”Revolução dos Cedros”. Em abril/2005, as tropas sírias se retiram do país.

    Em 2006, o Hezbollah atacou soldados de Israel e sequestrou dois espiões. Começa a Sexta Guerra Árabe-Israelense que causou a morte de 1.200 pessoas no Líbano e 157 em Israel, durante 34 dias de lutas. A ONU mantém tropas tentando encerrar os choques armados entre sunitas e alauitas, e cessar as escaramuças na parte libanesa, novamente ocupada por Israel.

O ataque à histórica cidade Qana, fronteiriça com Israel, onde teria se realizado o primeiro milagre de Jesus Cristo transformando água em vinho, começou com um bombardeio a uma base da ONU. Israel alega ter sido um acidente, mas sabe-se que o ataque foi planejado, inclusive com alerta à população civil para se retirar.

Não houve acordo declarando o fim das hostilidades, não há um tratado de paz, e os dois países permanecem, tecnicamente, em guerra. Disputam uma área marítima rica em petróleo e gás, no Mediterrâneo. Há também outro foco de conflito, devido à construção, por Israel, de uma muralha de sete metros de altura, na fronteira com o Líbano. Israel alega que a construção é dentro do território israelense.

Portanto, é um conflito que vem de muitos anos, passando por 2006, durando até hoje.

Continuam os conflitos entre os diversos grupos políticos ou religiosos. O cargo de presidente ficou vago durante seis meses, até que, devido a um acordo entre a oposição, liderada pelo Hezbollah, e o governo, foi eleito o general Michel Suleiman, que governou de 2008 até 2014.

O país já sofreu vários atentados terroristas perpetrados pelo Estado Islâmico.

A guerra na Síria provoca reflexos no Líbano, que tem grupos apoiadores e contrários, e abriga cerca de 1.5 milhão de refugiados sírios. Crianças de seis anos de idade têm que trabalhar.

Em novembro/2016, após mais de dois anos de vácuo institucional e 45 tentativas de acordos fracassadas, o Parlamento elegeu presidente do país o ex comandante do Exército Michel Aoun, para um mandato de seis anos. O Hezbollah apoiou. Saad Hariri, sunita, foi designado primeiro-ministro. Os xiitas têm aliança com o Irã, enquanto os sunitas têm o apoio da Arábia Saudita.

O primeiro-ministro Hariri, enquanto visitava a Arábia Saudita, anunciou sua renúncia ao cargo no Líabano. As autoridades libanesas afirmam que Hariri era prisioneiro e refém de chantagens que a Arábia Saudita fez com seus familiares, que eram forçados a permanecerem em Riad.

Há cerca de 400 mil libaneses trabalhando na AS, que mandam para seus familiares no Líbano cerca de 7 a 8 bilhões de dólares por ano. Há também, o temor de que a AS faça contra o Líbano o mesmo que fez contra o Qatar, isto é, bloqueio econômico e comercial, o que faria cessar as remessas.

O governo saudita exige que o Líbano imponha restrições ao Hezbollah para que saia da coalizão governamental, deixe de lutar no Iêmen, onde apoia os xiitas houthis e pare de apoiar, na Síria, o presidente Bashar Assad.

O presidente da França, Emmanuel Macron, intercede para tentar estabelecer a paz.

Governos de vários países apoiam a exigência do Líbano pela volta do Primeiro-Ministro. Embaralhando a política no país, Saad Hariri voltou ao Líbano em 11/2017 e anunciou que suspendeu a sua renúncia ao cargo de primeiro-ministro.

O país, dividido em dois campos políticos, enfrenta muitos conflitos.

A demarcação de fronteiras marítimas com Israel e o muro israelense entre os dois países, é grande fonte de atrito.

            Nas eleições realizadas em maio/2018, o Hezbollah e seus aliados foram os grandes vencedores, conquistando mais da metade das cadeiras no Parlamento. Juntamente com o Movimento Atual liderado pelo presidente Michel Aoun e outros Movimentos, obtiveram 67 cadeiras, do total de 128.  O partido Movimento Futuro, liderado pelo primeiro-ministro Saad al-Hariri e apoiado pelos EUA, caiu de 33 cadeiras para 21. Os cristãos das Forças Libanesas, adversários do Hezbollah, passaram de 8 para 15 membros.

Em outubro/2019, surgiram fortes manifestações populares, depois que o governo anunciou novos impostos e a implantação de medidas de austeridade. 25% da população vive abaixo da linha da pobreza e o país enfrenta graves dificuldades econômicas. O movimento espalhou-se por outras cidades. O Hezbollah alerta para a possibilidade de uma guerra civil e pede cautela a seus militantes e que não participem do movimento, que está sendo aproveitado pelos EUA e Israel.

A situação de penúria do país, agravada pela pandemia de coronavírus e a inflação acima de 52% ao mês, levou ao não pagamento, pela primeira vez, de um título da dívida pública e provocou uma onda de suicídios na população, que além da miséria enfrenta várias violências.

Aguardemos esclarecimentos sobre a explosão.

Em 4 de agosto de 2020

RONALD SANTOS BARATA

barataronald@gmail.com


Nenhum comentário: